Rito e jogo: coisas muito esquecidas - Jornal Cruzeiro do Vale 3b6d

Rito e jogo: coisas muito esquecidas 17715b

09/07/2014 382a11

Nestas semanas de Copa Mundial de futebol vivemos cenas carregadas de ritos, festas e smbolos. A abertura oficial uma sequncia de ritos e smbolos ligados ao futebol, principalmentea apresentao dos times e o canto do hino nacional. O ambiente de festa enche as cidades, enfeita as ruas e as janelas das casas.

Vamos abordar o tema do rito e da festa, cujo sentido humano e social nem sempre refletido quando no esquecido. Antes de mais nada, sem o rito no h festa, porque esta se move dentro do mundo simblico, feito de ritos e smbolos. O comer e o beber na festa no visam matar a fome e saciar a sede. Para isso comemos em casa ou num restaurante. Eles simbolizam a amizade e a alegria do encontro e de juntos participar de um evento como uma partida de futebol. Cantar na festa no quer ser um show de msica artstica mas expresso ritual de euforia e de desafogo existencial. E como se celebra e se bebe quando o time de estimao vence uma partida ou ganha um campeonato.

?Que um rito?? perguntava o Pequeno Prncipe raposa que o havia cativado, no famoso livro de A. de Saint Exupry com o mesmo ttulo. E respondia:? uma coisa muito esquecida; o que faz os outros dias diferentes dos outros dias, uma hora diferente das outras. H um rito entre meus caadores. s quintas-feiras eles danam com as meninas da vila. Ento na quinta um dia maravihoso! Eu vou ear at o vinhedo. Se os caadores danassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais e eu no teria frias?(p.27).

O rito, pois, o que faz a festa, como o dia diferente dos outro sidas. Mas ele s ganha fora expressiva se houver a preparao e a espera interior, como ocorre antes de um jogo de futebol entre dois times famosos. Por isso pondera a raposa ao Pequeno Prncipe:?voc faria melhor se viesse sempre na mesma hora; se vier, por exemplo, s quatro da tarde, j s trs eu comearei a ser feliz?.mas se voc vier a qualquer momento eu no saberei jamais como preparar o meu corao..So necessrios ritos?(p.71).

S com o rito haver festa porque ento todas as coisas perdem sua consistncia natural, para assumir um valor simblico e profundamente humano. Elas perdem sua finalidade (so inteis) para ganhar seu verdadeiro sentido. Os ruidos dos os no espantaro mais a raposa mas so como msica: lembram a aproximao do Pequeno Prncipe. Os trigais no fazem recordar o po (finalidade) mas os cabelos de ouro do Pequeno Prncipe(sentido).

Geralmente forte a presena do rito, alm dos fatos acima referidos, nas celebraes religiosas (o matrimnio, por exemplo, ou a ordenao sacerdotal). O rito exprime melhor o sentido das coisas que a linguagem que ?fonte de mal-entendidos? como comenta a raposa. Por isso o rito tanto mais expressivo quanto mais brotar das profundezas de nosso eu, de nossos arqutipos profundos, onde se elabora nossa identidade pessoal.

Todo ser humano, mesmo o mais secular e racional mtico, no sentido da expresso ritual e simblica. Quando quer dizer o que ele mesmo , sua alegria, sua tristeza, sua paixo, seu amor no usa conceitos frios mas metforas ou conta histrias de vida que so os mitos reais. Por eles, emerge o mistrio da caminhada pessoal de cada um, sem viol-la. Os ritos e as celebraes sempre pedem seriedade e concentrao.

Tudo isso que descrevemos do rito tem muito a ver com o jogo. No penso aqui no jogo que virou profisso e grande comrcio internacional como o futebol e outros. So antes esportes que jogos. O jogo, como ocorre nos meios populares, nas peladas ou na praia, no possui finalidade prtica nenhuma, mas em si mesmo carrega um profundo sentido como expresso de alegria de estar e de divertir-se juntos.

H uma tradio antiga das duas Igrejas-irms, a latina e a grega que se referem ao Deus ludens, ao homo ludens e at da eccclesia ludens (o Deus, o homem e a Igreja ldicos).

Eles viam a criao como um grande jogo do Deus ldico: para um lado jogou as estrelas, por outro o sol, para baixo jogou os planetas e com carinho jogou a Terra, equidistante do Sol, para que pudesse ter vida. A criao uma espcie de alegria transbodante de Deus, um theatrum gloriae Dei (teatro da glria de Deus).

Num belo poema diz o grande telogo da Igreja ortodoxa Gregrio Nazienzeno (+390): ?O Logos sublime brinca. Enfeita com as mais variegadas imagens e por puro gosto e por todos os modos, o cosmos inteiro?. Com efeito, o brinquedo obra da fantasia criadora, com o mostram as crianas: expresso de uma liberdade sem coao, criando um mundo sem finalidade prtica, livre do lucro e de vantagens individuais.

?Porque Deus vere ludens (verdadeiramente ldico) cada um deve ser tambm veres ludens, oestava, j velhinho, um dos mais finos telogos do sculo XX, irmo de outro eminente telogo, que foi professor meu na Alemanha, Karl Rahner.

Estas consideraes vem mostrar como pode ser desanuviada e sem angstias a nossa existncia aqui na Terra, especialmente quando transfigurada pela Presena jovial de Deus em sua criao. Ento no precisamos temer. O que nos tolhe a liberdade e a criatividade o medo. O oposto f no tanto o ateismo mas o medo, especialmente o medo da solido.Ter f mais que aderir a um feixe de verdade, alegrar-se por sentir-se na palma da mo de Deus e poder viver diante dele como uma criana que despreocupadamente brinca.

Leonardo Boff, telogo e escritor

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Indianara Schmitt

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