Quo ?cordial? o povo brasileiro? - Jornal Cruzeiro do Vale 3h3k6o

Quo ?cordial? o povo brasileiro? 2j1h6c

30/10/2014 d3r14

Dizer que o brasileiro um ?homem cordial? vem do escritor Ribeiro Couto, expresso generalizada por Srgio Buarque de Holanda em seu conhecido livro: ?Rizes do Brasil? de 1936 que lhe dedica o inteiro captulo V. Mas esclarece, contrariando Cassiano Ricardo que entendia a ?cordialidade?como bondade e a polidez, que ?nossa forma ordinria de convvio social no fundo, justamente o contrrio da polidez?(da 21 edio de 1989 p. 107). Sergio Buarque assume a cordialidade no sentido estritamente etimolgico: vem de corao. O brasileiro se orienta muito mais pelo corao do que pela razo. Do coraopodem provir o amor e o dio. Bem diz o autor:?a inimizade bem pode ser to cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do corao?(p.107).

Escrevo tudo isso para entender os sentimentos ?cordiais? que irromperam na campanha presidencial de 2014. Houve por uma parte declaraes de entusiasmo e de amor at ao fanatismo para os dois candidatos e por outra, de dios profundos, expresses chulas por parte de ambas as partes do eleitorado. Verificou-se o que Buarque de Holanda escreveu: a falta de polidez no nosso convvio social.

Talvez em nenhuma campanha anterior se expressaram os gestos ?cordiais? dos brasileiros no sentido de amor e dio contidos nesta palavra. Quem seguiu as redes sociais, se deu conta dos nveis baixssimo de polidez, de desrespeito mtuo e at falta de sentido democrtico como convivncia com as diferenas. Essa falta de respeito repercutiu tambm nosdebates entre os candidatos, transmitidos pela TV. Por exemplo, que um dos candidatos chame a Presidenta do pas de ?leviana e mentirosa? se inscreve dentro desta lgica ?cordial?, embora revele grande falta de respeito diante da dignidade do mais alto cargo da nao.

Para entender melhor esta nossa ?cordialidade? cabe referir duas heranas que oneram nossa cidadania: a colonizao e a escravido. A colonizao produziu em ns o sentimento de submisso, tendo que assumir as formas polticas, a lingua, areligio e os hbitos do colonizador portugus. Em consequncia criou-se a Casa Grande e a Senzala. Como bem o mostrou Gilberto Freyre no se trata de instituies sociais exteriores. Elas foram internalizadas na forma de um dualismo perverso: de um lado os senhor que tudo possui e manda e do outro o servo que pouco tem e obedece ou tambm a hierarquizao social que se revela pela diviso entre ricos e pobres. Essa estrutura subsiste na cabea das pessoas e se tornou um cdigo de interpretao da realidade.

Outra tradio muito perversa foi a escravido. Cabe recordar que houve uma poca, entre 1817-1818, em que mais da metade do Brasil era composta de escravos (50,6%). Hoje cerca de 60% possui algo em seu sangue de escravos afro-descendentes. O catecismo que os padres ensinavam aos escravos era ?pacincia, resignao e obedincia?; aos escravocratas se ensinava ?moderao e benevolncia? coisa que, de fato, pouco se praticava. A escravido foi internalizada na forma de discriminao e preconceito contra o negro que devia sempre servir. Pagar osalrio entendido por muitos ainda uma caridade e no um dever, porque osescravos antes faziam tudo de graa e, imaginam que devem continuar assim. Pois desta forma se tratam, em muitos casos, os empregados e empregadas domsticas ou os pees de fazendas.

As consequncias destas duas tradies esto no inconsciente coletivo brasileiro em termos, no tanto de conflito de classe (que tambm existe) mas antes de conflitos de status social. Diz-seque o negro preguioso quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo que temos em nossas cidades. O nordestino ignorante, porque vivem no semi-rido sob pesados constrangimentos ambientais, quando um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do nordeste nos vm os maiores escritores, poetas, atores e atrizes. No Brasil de hoje regio que mais cresce economicamente na ordende 2-3%, portanto, acima da mdia nacional. Mas o preconceito os castigam inferioridade.

Todas essas contradies de nossa ?cordialidade? apareceram nos twitters, facebooks e outras redes sociais. Somos seres contraditrios.

Acrescento ainda um argumento de ordem antropolgica para compreender a irrupo dos amores e dios nesta campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade fontal da condio humana. Cada um possui a sua dimenso de luz e de sombra, de sim-blica (que une) e de dia-blica (que divide). Os modernos falam que somos simultaneamente dementes e sapientes (Morin), quer dizer, pessoas de racionalidade e bondade e ao mesm tempo de irraconalidade e maldade. A tradio crist fala que somos simultaneamente santos e pecadores. Na feliz expresso de Santo Agostinho: cada um Ado, cada um Cristo, vale dizer, cada um cheio de limitaes e vcios e ao mesmo tempo portador de virtudes e de uma dimenso divina. Esta situao no um defeito mas uma caracterstica da condition humaine. Cada um deve saber equilibrar estas duas foras e na melhor das hipteses, dar primazia s dimenses de luz sobre as de sombras, as de Cristo sobre as do velho Ado.

Nestes meses de campanha eleitoral se mostrou quem somos por dentro: ?cordiais? mas no duplo sentido: cheios de raiva e de indignao e ao mesmo tempo de exaltao positiva e de militncia sria e auto-controlada.

No devemos nem rir nem chorar, mas procurar entender. Mas no suficiente entender; urge buscar formas civilizadas da ?cordialidade? na qual predomine a vontade de cooperao em vista do bem comum, se respeite o legtimo espaco de uma oposio intelgente e se acolham as diferentes opes polticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos e externos (guerras de grande devastao e a grave crise no sistema-Terra e no sistema-vida), num projeto por todos assumido para que se crie o que se chamou de o Brasil como a ?Terra da boa Esperana?(Ignacy Sachs).

Leonardo Boff, telogo e escritor

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Indianara Schmitt

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