20/08/2014 11v3r
Em memria de Eduardo Campos por Leonardo Boff, telogo e escritor
A nossa gerao viu cair dois muros aparentemente inabalveis: o muro de Berlim em 1989 e o muro de Wall Street em 2008. Com o muro de Berlim ruu o socialismo realmene existente, marcado pelo estatismo, o autoritarismo e a violao dos direitos humanos. Com o muro de Wall Street, se desligitimou o neoliberalismo como ideologia poltica e o capitalismo como modo de produo, com sua arrogncia, sua acumulao ilimitada (greed ist good= a ganncia boa), a preo da devastao da natureza e da explorao das pessoas.
Apresentavam-se como duas vises de futuro e duas formas de habitar o planeta, agora incapazes de nos dar esperana e de reorganizar a convivncia planetria, na qual todos possam caber e que assegurem as bases naturais que sustentam a vida em avanado grau de eroso.
neste contexto que ressurgem sejam as propostas vencidas no ado mas que podem ter agora chance de realizao (Boaventura de Souza Santos), como a democracia comunitria e o ?bem viver? dos andinos seja do socialismo originrio, pensado como uma forma avanada de democracia.
O capitalismo realmente existente (a sociedade de mercado) eu descarto de antemo, porque to nefasto que a continuar com sua lgica devastadora pode liquidar com a vida humana sobre o planeta. Hoje ele funciona para uma pequena minoria: 737 grupos econmico-financeiros controlam 80% das corporao transnacionias e dentro destes 147 grupos controlam 40% da economia mundial (segundo dados do famoso Instituto Tecnolgico Suio) ou os 85 mais ricos que acumulam o equivalente do que ganham 3,57 bilhes de pobres do mundo (Relatrio da Oxfam Intermon de 2014). Tal perversidade no pode prometer nada para a humanidade seno depauperao crescente, fome crnica, sofrimento atroz, morte prematura e, no limite, o armagedon da espcie humana.
Ao socialismo, assumido no Brasil por vrios partidos, particularmente o PSB com o lamentado Eduardo Campos, cabem algumas chances. Sabemos que seu nascedouro se encontra entre ativistas cristos, crticos dos excessos do capitalismo selvagem como Sait-Simon, Proudon, Fourier que se inspiraram nos valores evanglicos e naquilo que se chamou de ?A Grande Experincia? que foram os 150 anos da ?repblica comunista crist dos guaranis (1610-1768). A economia era coletivista, primeiro para as necessidades presentes e futuras e o resto para a comercializao.
Um jesuita suio Clovis Lugon (1907-1991) expos apaixondamente o intento com seu famoso livro:?A repblica guarani: os jesuitas no poder?(Paz e Terra 1968). Um procurador da repblica brasileiro Luiz Francisco Fernandez de Souza (*1962) escreveu um livro de mil pginas:?O socialismo: um utopia crist?. Pessoalmente vive os ideais que prega: fez voto de pobreza, se veste simplrrimamente e vai ao trabalho com um velho fusca.
Os fundadores do socialismo (Marx pretendeu dar-lhe um carter cientfico contra os outros que chamava de utpicos) nunca entenderam o socialismo como simples contraposio ao capitalismo, mas como a realizao dos ideais proclamados pela revoluo burguesa: a liberdade, a dignidade do cidado, o seu direito de livre desenvolvimento e a participao na construo da vida coletiva e democrtica. Gramsci e Rosa Luxemburgo viam no socialismo como a realizao plena da democracia.
A questo bsica de Marx (abstraindo da construo terico-ideolgica discutvel que criou ao redor disso) era: porque a sociedade burguesa no consegue realizar para todos os ideais que ela proclama? Produz o contrrio do que quer. A economia poltica deveria satisfazer as demandas humanas (comer, vestir, morar, instruir-se, comunicar-se etc) mas na verdade ela atende s necessidades do mercado, em grande parte, artificialmente induzidas e visa crescente lucro.
Para Marx a no consecuo dos ideais da revoluo burguesa no se deve m vontade dos indivduos ou dos grupos sociais. consequncia inevitvel do modo de produo capitalista. Este se baseia na apropriao privada dos meios de produo (capital como terras, tecnologia etc) e na subordinao do trabalho aos interesses do capital. Tal lgica dilacera a sociedade em classes, com interesses antagnicos, incidindo em tudo: na poltica, no direito, na educao etc.
As pessoas na ordem capitalista tendem facilmente, quer queiram ou no, a se tornar desumanas e estruturalmente ?egoistas?, pois cada qual se sente urgido a cuidar, primeiro, de seus interesses e somente depois dos interesses coletivos.
Qual a sada excogitada por Marx e seguidores? Vamos trocar de modo de produo. No lugar da propriedade privada, vamos introduzir a propriedade social. Mas cuidado, adverte Marx: a troca do modo de produo no ainda a soluo. Ela no garante a nova sociedade, apenas oferece as chances de desenvolvimento dos indivduos que no seriam mais meios e objetos mas fins e sujeitos solidrios na construo de um mundo realmente com rosto humano. Mesmo com estas precondies, as pessoas tm que querer viver as novas relaes. Caso contrrio no surgir a nova sociedade. Diz mais: ?a histria no faz nada; o ser humano concreto e vivo que tudo faz..;a histria no outra coisa que a atividade dos seres humanos buscando seus prprios objetivos?.
Minha aposta: iremos na direo de uma crise ecolgico-social de tal magnitude que, ou assumimos o socialismo com esse teor humanstico, ou ento no temos como sobreviver.
Leonardo Boff, telogo e escritor
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