08/06/2015 1a266r
Talvez alguns se espantem diante de semelhante ttulo: ?De Ecclesia Lascatorum?, a ?Igreja dos lascados?. No final do meu livro Igreja: carisma e poder (1982) eu prometia uma continuao com o ttulo De severina Ecclesia: a ?Igreja severina?. Quer dizer, a Igreja dos lascados e pobres, chamados de ?severinos? no Nordeste. Nunca pude escrever tal livro, embora o Card. Joseph Ratzinger, ainda Presidente da Congregao para a Doutrina da F, que julgou aquele livro, de tempos em tempos, pedia informaes se o livro anunciado havia sido publicado ou no. Enchia-se de temores pela ortodoxia do texto pois o tema dos pobres sempre mete medo aos portadores de poder.
Mas eis que agora aparece um livro que concretizou aquele meu propsito de antanho. Vem elaborado de uma forma profundamente espiritual, comovedora e convicente pelo meu querido e saudoso confrade Frei Lency Frederico Smaniotto, apelidado no seminrio, carinhosamente de ?Bambio? ou de ?Cascudo?, recentemente falecido.
Se algum quiser conhecer a radicalidade de um franciscano que tomou a srio a mensagem inovadora do Conclio Vaticano II, os documentos do episcopado latino-americano de Medellin e de Puebla, a opo radical pelos pobres e lascados e a teologia da libertao, leia, ento, este livro. Segure as lgrimas porque sua saga provoca tal comoo, pela coerncia, afetuosidade, humildadade, coragem e espiritualidade franciscana que s encontra paralelo no Padre Alfredinho, em Frei Damio, no bispo de Barra na Bahia Dom Luiz Fernando Cappio e no bispo de So Felix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga, e ouso dizer, no Papa Francisco, entre outros.
Ele realizou literalmente o que o Papa Francisco pediu no dia 28 de maio de 2015 aos franciscanos do mundo inteiro: que vivessem a menoridade. Dizia o Papa:?menoridade significa sair de ns mesmos, de nossos esquemas e pontos de vista pessoais; significa ir alm das estruturas ? que tambm so teis, quando utilizadas sabiamente ?, alm dos hbitos e das certezas, para testemunhar uma proximidade concreta com os pobres, necessitados e marginalizados, em uma atitude autntica de partilha e de servio?. Frei Lency foi concretamente um frade menor que se abaixava at estar altura dos olhos do outro para v-lo olho a olho.
Escreveu o livro De Ecclesia lasctorum em cima de um bujo de gs. Nele no se trata de fazer teologia. Mas de testemunhar uma mstica junto aos mais humilhados deste mundo, os servos sofredores e invisveis da sociedade. No apenas escrever mas muito mais viver, sofrer junto, apanhar junto, ser preso junto, arriscar a vida junto e alegrar-se junto. Mil lutas e centenas de derrotas. Mas, como o Mestre, nunca abandonou os seus. Sempre se reergueu e retomou a via-sacra dos lascados, onde quer que estivessem.
Percorreu as principais estaes da paixo popular nos vrios Estados no Brasil. Efetivamente, Jesus continua dependurado na cruz, gotejando suor e sangue e gritando oraes a Deus. Frei Lency se associou queles que escutaram o lamento do Mestre. Juntos com tantos lascados procurou baix-los da cruz.
Estimo que este livro um dos testemunhos mais vivos, mais fiis e mais persuasivos da Igreja dos pobres, honra de nossa Igreja brasileira e farol a iluminar caminhos de tantos que, comivos e soiidrios, querem e nem sempre podem seguir a mesma opo.
Mas esta opo est a para mostrar que o Evangelho dos lascados est vivo. Ele pode ser vivido na radicalidade que a viveu Francisco de Assis, atualizada por Francisco de Roma. Sua mensagem to desafiadora que nenhuma editora teve a coragem evanglica de public-la. Mas ?habent sua fata libelli? diziam os antigos:?os livros, os verdadeiros, tm o seu destino.?
O livro completado com escritos de outro que se identificou com a populao afrodescentente Frei David Raimundo Santos, abrindo escolas e preparando estudantes para a universidade.
Frei Lency j no est mais visvel entre ns, embora sempre presente. Ele est com seus lascados que o precederam na glria. Est, finalmente, junto com o Ressuscitado que no escondeu suas chagas de lascado. Depois de tanta luta, Frei Lency no morreu: foi atender a um chamado de Deus que lhe sussurrou:
?Meu querido filho, Lency, como te esperava! Vens cansado e com o corpo todo gasto. Agora ests comigo e te levarei fonte da eterna juventude onde todos os teus irmos e irms lascados esto te esperando. E qual guia que renova todo o seu corpo, revivers. Mais ainda, ressuscitars para estares eternamente conosco, com aqueles ?meus irmos e irms menores? nos quais eu estava presente e que tu me serviste e que agora j no padecem, j no choram nem se lamentam pois tudo isso ou?.
?Vem, meu querido filho Lency. Vem, pois te esperava desde sempre. Cumpriste tua misso como a minha quando peregrinava entre os pobres e lascados da Palestina. Vem, fica conosco para sempre pelos tempos que no tero fim num novo Cu e numa nova Terra onde no haver mais lascados porque todos sero irmos e irms, meus filhos e filhas queridos?.
Leonardo Boff
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