02/07/2014 22343g
Leonardo Boff, telogo e escritor
Para compreendermos em profundidade a sexualidade humana, precisamos entender que ela no existe isolada, mas representa um momento de um processo maior: o biognico.
A nova cosmologia nos habituou a considerar cada realidade singular dentro do todo que vem sendo urdido j h 13,7 bilhes de anos e a vida h 3,8 bilhes de anos. As realidades singulares (elementos fsico-qumicos, microorganismos, rochas, plantas, animais e seres humanos) no se juxtapem mas se entrelaam em redes interconectadas constituindo uma totalidade sistmica, complexa e diversa.
Assim, a sexualidade emergiu h um bilho de anos como um momento avanado da vida. Depois da decifrao do cdigo gentico por Crick e Dawson nos anos 50 do sculo ado. sabemos hoje comprovadamente que vigora a unidade da cadeia da vida: bactrias, fungos, plantas, animais e humanos somos todos irmos e irms porque descendemos de uma nica forma originria de vida. Temos, por exemplo, 2.758 genes iguais aos da mosca e 2.031 idnticos aos do verme.
Esse dado se explica pelo fato de que todos, sem exceo, somos construdos a partir de 20 proteinas bsicas combinadas com quatro cidos nucleicos (adenina, timina, citosina e guanina). Todos descendemos de um anteado ancestral comum, originando a ramificao progressiva da rvore da vida. Cada clula de nosso corpo, mesmo a mais epidrmica, contm a informao bsica de toda vida que conhecemos. H, pois, uma memria biolgica inscrita no cdigo gentico de todo organismo vivo.
Assim como existe a memria gentica, existe tambm a memria sexual que se faz presente na nossa sexualidade humana. Consideremos alguns os desse complexo processo. O anteado comum de todos os seres vivos foi, muito provavelmente, uma bactria, tecnicamente chamada de procarionte que significa um organismo unicelular, sem ncleo e com uma organizao interna rudimentar. Ao se multiplicar rapidamente por diviso celular (denominada mitose: uma clula-me se divide em duas clulas-filhas idnticas) surgiram colnias de bactrias. Reinaram, sozinhas, durante quase dois bilhes de anos. Teoricamente a reproduo por mitose confere imortalidade s clulas, pois seus descendentes so idnticos, sem mutaes genticas.
Por volta de dois bilhes de anos atrs, ocorreu um importante fenmeno para a posterior evoluo, somente suplantado pelo surgimento da prpria vida: a irrupo de uma clula com membrana e dois ncleos. Dentro deles se encontram os cromossomos (material gentico) nos quais o DNA se combina com proteinas especiais. Tecnicamente chamada de eucarionte ou tambm clula diplide, isto , clula com ncleo duplo.
A importncia desta clula binucleada reside no fato de nela se encontrar a origem do sexo. Em sua forma mais primitiva, o sexo significava a troca de ncleos inteiros entre clulas binucleadas, chegando a fuso em um nico ncleo diplide, contendo todos os cromossomos em pares. At aqui as clulas se multiplicavam sozinhas por mitose (diviso) perpetuando o mesmo genoma. A forma eucariota de sexo, que se d pelo encontro de duas clulas diferentes, permite uma troca fantstica de informaes contidas nos respectivos ncleos. Isso origina uma enorme biodiversidade.
Surge, pois, um novo ser vivo, a clula que se reproduz sexualmente a partir do encontro com outra clula. Tal fato j aponta para o sentido profundo de toda sexualidade: a troca que enriquece e a fuso que cria pradoxalmente a diversidade. Esse proceso envolve imperfeies, inexistente na mitose. Mas favorece mutaes, adaptaes e novas formas de vida.
A sexualidade revela a presena da simbiose (composio de diferentes elementos) que, junto com a seleo natural, representa a fora mais importante da evoluo.
Tal fato vem carregado de consequncias filosficas. A vida tecida de cooperao, de trocas, de simbioses, muito mais do que de luta competitiva pela sobrevivncia. A evoluo chegou at o estgio atual graas essa lgica cooperativa entre todos.
Deixando de lado muitos outros dados e indo diretamente sexualidade humana devemos reconhecer que ela est embasada num bilho de anos de sexognese. Mas possui algo singular: o instinto se transforma em liberdade, a sexualidade desabrocha no amor. A sexualidade humana no est sujeita ao ritmo biolgico da reproduo. O ser humano se encontra sempre disponvel para a relao sexual, porque esta no se ordena apenas reproduo da espcie mas tambm e principalmente manifestao do afeto entre os parceiros. O amor reorienta a lgica natural da sexualidade como instinto de reproduo; o amor faz com que a sexualidade se descentre de si para se concentrar no outro. O amor torna os parceiros preciosos uns para os outros, nicos no universo, fonte de irao, de enamoramento e de paixo. por causa dessa aura que o amor se revela como o mbito da suprema realizao e felicidade humana ou, no seu fracasso, da infelicidade e da guerra dos sexos.
O ser humano precisa aprender a combinr instinto e amor. Sente em si, necessidade de amar e de ser amado. No por imposio, mas por liberdade e espontaneidade. Sem essa liberdade de quem d e de quem recebe, no existe amor. a liberdade e a capacidade de amorizao que constroem as formas de amor que humanizam o ser humano e lhe abrem perspectivas espirituais ultraando em muito as demandas do instinto.
Leonardo Boff escreveu com Rose Marie Muraro, recm falecida, Feminino-masculino: um novo paradigma para uma nova relao, Record 2010.
Edio 1602
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