H sempre algum esperando Godot - Jornal Cruzeiro do Vale 1d1h5i

Conheci um homem que fez de tudo na vida. Dizem que foi ateu e marxista e que chegou a ser mercenrio da Legio Estrangeira sa e que atirou contra muita gente.

De repente se converteu. Fez-se monge sem sair do mundo. Foi trabalhar como estivador. Mas todo o tempo livre dedicava-o orao e meditao. Durante o dia recitava mantras: “Jesus, valei-me”. “Jesus, perdoai meus pecados”. “Jesus santificai-me”. “Jesus, fazei-me amigo dos pobres”. “Jesus, fazei-me pobre com os pobres”.

Estranhamente, tinha um jeito prprio de rezar. Pensava: se Deus se fez gente em Jesus, ento foi como ns: fez chichi, choramingava pedindo o peito, fazia biquinho com as coisas que o incomodavam como a fralda molhada.

No comeo Jesus teria gostado mais de Maria, depois mais de Jos, coisas que os psiclogos explicam. E foi crescendo como nossas crianas, brincando com formigas, correndo atrs dos cachorrinhos, atirando pedras em burros e, maroto, levantando os vestidinhos das meninas para v-las furiosas como imaginou irreverentemente Fernando Pessoa.

E ento rezava Maria, a me do Menino, imaginando como ela ninava Jesus, como lavava no tanque as fraldinhas e como cozinhava o mingau para o Menino as comidas fortes para o esposo, o bom Jos. E se alegrava interiormente com tais matutaes porque as sentia e vivia na forma de comoo do corao. E chorava com frequncia de alegria espiritual.

Ao fazer-se monge, decidiu por aqueles que fazem do mundo a sua cela e que vivem radicalmente a pobreza junto com os pobres: os Irmozinhos de Foucauld. Criou uma pequena comunidade na pior favela da cidade. Tinha poucos discpulos. A vida era muito dura: trabalhar com os pobres e meditar. Eram apenas trs que acabaram indo todos embora. Essa vida, assim exigente, no era para eles.

Viveu em vrios pases, mas foi sempre ameaado de morte pelos regimes militares e tinha que se esconder e fugir para outro pas. A, tempos depois, lhe ocorria a mesma sorte. Mas ele se sentia na palma da mo de Deus. Por isso vivia despreocupado.

Indispunha-se tambm com a Igreja institucional, essa do cristianismo apenas devocional e sem compromisso com a justia dos pobres. Mas, finalmente, conseguiu agregar-se a uma parquia que fazia trabalho popular. Trabalhava com os sem-terra, com os sem-teto e com um grupo de mulheres. Acolhia prostitutas que vinham chorar suas mgoas com ele. E saiam consoladas.

Corajoso, organizava manifestaes pblicas em frente prefeitura e puxava ocupaes de terrenos baldios. E quando os sem-terra e sem-teto conseguiam se estabelecer, fazia belas celebraes ecumnicas com muitos smbolos, as chamadas “msticas”.

Mas todos os dias, depois da missa da noite, ficava enfurnado, por longo tempo, na igreja escura. Apenas a lamparina lanava lampejos titubeantes de luz, transformando as esttuas mortas em fantasmas vivos e as colunas eretas, em estranhas bruxas. E l se quedava, Imvel, olhos fixos no tabernculo, at que viesse o sacristo para fechar a igreja.

Um dia fui procur-lo na igreja. Perguntei-lhe de chofre: “meu irmozinho, (no vou revelar seu nome porque o entristeceria), voc sente Deus, quando depois dos trabalhos, se mete a meditar aqui na igreja? Ele lhe diz alguma coisa”?

Com toda a tranquilidade, como quem acorda de um sono profundo, olhou-me meio de lado e apenas disse:

“Eu no sinto nada. H muito tempo que no escuto a voz do Amigo (assim chamava Deus). J senti um dia. Era fascinante. Enchia meus dias de msica. Hoje no escuto mais nada. Talvez o Amigo no me falar nunca mais”.

Retruquei eu, “por que continua, todas as noites, a na escurido sagrada da igreja”?

“Eu continuo”, respondeu, “porque quero estar disponvel; se o Amigo quiser chegar, sair de seu silncio e falar, eu estou aqui para escutar. Imagine, se Ele quiser falar e eu no estiver aqui? Pois ele,cada vez, vem apenas uma nica vez. Que seria de mim, infiel amigo do Amigo”? Sim, ele continua sempre “esperando Godot”. “E no se move” como da pea de Samuel Beckett.

Deixei-o em sua plena disponibilidade. Sai maravilhado e meditativo. por causa desses que o mundo poupado e Deus continua a manter sua misericrdia sobre aqueles que o esquecem ou o consideram morto, segundo disse um filsofo que ficou louco. Mas h os que vigiam e esperam, contra toda a esperana esperam Godot. Esta espera far que,cada dia, tudo seja novo e cheio de jovialidade.

Um dia o sacristo o encontrou inclinado sobre o banco da Igreja. Pensou que dormia. Percebeu que o corpo estava frio e enrijecido.

Como o Amigo no veio, ele foi ao encontro dele. Agora no precisa mais esperar Godot e o seu advento. Estar com o Amigo, celebrando uma amizade, no maior entretenimento, pelos tempos sem fim.